Transparência visível – Studio Arsis


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À frente do Estudio Arsis, referência na gravação de pianos e instrumentos acústicos, Adonias Souza Jr. conta como foi sua trajetória e como alcançou a sonoridade tão invejada


Há mais de 25 anos no mercado, Adonias Souza Jr. já gravou em seu estúdio, o Arsis, desde pianistas de jazz, como Amilton Godoy e Fabio Torres, a nomes da ambient music como Corcioli. Mas, para ele, o grande referendo em relação à qualidade do piano Estonia – que ele mesmo restaurou – e à sonoridade conseguida veio com a aprovação de grandes artistas da música erudita, como Olga Kopylova e Cristian Budu. Isso porque, segundo ele, esses músicos têm mais acesso a instrumentos de qualidade, mais referências em relação à mecânica e exigem uma resposta precisa aos movimentos mais sutis que empregam. Longe de se envolver na eterna discussão erudito versus popular, Adonias se dedica a captar com a melhor qualidade possível – e a maior transparência – as criações de músicos das mais variadas vertentes. Conversamos com ele para saber mais sobre sua história e a do estúdio que se tornou referência no Brasil.


Como surgiu esse interesse por música? Como foi tua formação e como você chegou ao Arsis?

Nasci em família musical. Meu pai é pastor evangélico e sempre foi professor de música. É músico desde criança, gravou discos e é, dentro da igreja, um grande ícone musical. Criou vários grupos, orquestras, dirigiu a música em várias situações, com destaque. Todo mundo em casa canta bem, afinado e com qualidade. A gente sempre estudou música. E, desde que eu nasci, tinha piano em casa. Minhas duas irmãs começaram com o piano muito cedo. O repertório tradicional do piano é a minha realidade. Até brinco que dos Liszt, dos Chopin, que elas tocavam tanto, estudavam tanto, sei cada nota. Se o pianista que está tocando aqui erra, a minha memória de criança… Porque eu era o dedo duro lá de casa. Eu ia nos recitais das meninas, pequenininho e tal, e falava: “Oh, errou aquela nota, olha aquele pedacinho, que legal”. Então, foi uma situação de convívio com a música. Em casa, a gente cantava “Parabéns Pra Você” a quatro vozes, naturalmente. Minha primeira incursão ao mundo fonográfico foi com 4 anos de idade, porque eu era cantor mirim e gravei uma faixa no disco do meu pai. Foi a primeira vez que entrei num estúdio. E aí, comecei a estudar trompete, com 5, 6 anos, e peguei o trombone aos 9. Esse foi meu instrumento por toda a vida, até decidir mudar. Há mais ou menos 15 anos, deixei de tocar trombone e o meu instrumento agora é o áudio, porque faço isso musicalmente, não é só uma questão técnica. Passando pela vontade de viver a música, como adolescente, nessa época dos 15 ou 16 anos, vi a guitarra, estudei bastante, fiz ULM – Universidade Livre de Música, comecei a estudar jazz e me envolvi nessa história toda. Aí comecei a trabalhar no mercado musical indiretamente. Saí do Itaú com 17 anos, fui trabalhar numa loja, luthieria, que era de dois irmãos: um fazia bateria e o outro fazia instrumentos de cordas. Comecei a estudar luthieria de instrumentos elétricos e comecei fazendo circuitos elétricos para baixo, guitarra etc. Meu pai tinha equipamento de som modular, então eu ficava passando LP para fita cassete, fazia compilações, tentava otimizar as conexões, melhorar o som, o equalizador… Quer dizer, sempre tive uma vivência profunda com isso. Com a guitarra, comecei a brincar de gravar em casa, de um tape deck para outro, colocar um “reverbezinho”, um “pedalzinho” de delay. Profissionalmente, comecei trabalhando em loja de instrumentos musicais, montando, fazendo manutenção, vendendo, e, em casa e na igreja, sempre fazendo música, produzindo coisas. Entrei na faculdade e comecei a cursar física. Mudei de cidade e comecei a trabalhar numa loja de instrumentos musicais em Curitiba. Nessa vida de trabalhar na loja de instrumentos musicais, o pessoal descobriu que eu era trombonista e começou a me chamar para gravações.

O “boom” do estúdio digital começa naquele momento, com os DA88, o DAT, os Portastudios digitais. A gravação começa a ficar um pouco mais acessível… Como gerente da loja, comecei a atender clientes maiores e a fazer projetos. Quando entrei no estúdio e toquei meu trombone, “caraca, isso é muito legal, muito mais legal do que tocar ao vivo!”. Fiz show, toquei em palco grande, em palco médio, em palco pequeno, mas sempre participando, nunca meu eu artístico, sempre como trio de metais, aquela coisa de naipe. Aí, vou dirigir uma escola de música e resolvo mudar de faculdade. Estava no terceiro ano de Física e fui para a Licenciatura em Música. Comecei a aprofundar mais a questão musical, e, enquanto isso, fazia projetos de teatros, igrejas, centros de conferência. Por conta da física e da eletrônica, eu tinha muita habilidade nessa parte. Então tenho, mais de 150 projetos de sonorização, mais de 20 ou 25 estúdios que projetei e executei nesses 5 ou 7 anos que fiquei por lá. Vim para São Paulo, ainda na questão da igreja, para montar uma estrutura de produção de material, de áudio para educação, programação de rádio, e gravar os grupos musicais e tudo mais. Fiquei dois anos dentro desse ambiente fechado para a igreja, e aí, num momento, cheguei para os “caras” e falei: “Olha, a gente tem tempo ocioso aqui, a gente podia fazer render, vamos começar a atender aos clientes, e aí essa grana ajuda a comprar equipamento e tal…”. Isso ainda como instituição, então o estúdio é da igreja e beleza! Em pouco mais de um ano, começamos a discutir a questão trabalhista, porque o meu banco de horas já estava com mais de 400 horas. Era sábado, domingo, feriado, à noite… Estúdio, né? E aí, me propuseram: “Vamos fazer o inverso, você fica com o estúdio, explora o estúdio e nos paga um aluguel, um arrendamento. A gente faz uma conta corrente com os trabalhos que você fizer”. E aí, cada vez mais, fui assumindo, montando, aumentando equipamento, até fui deixando de fazer trabalho para eles. Me desliguei da igreja, depois de um tempo, mas continuei no prédio deles, alugando espaço. E foi lá que vários discos importantes foram gravados. E foi curioso, porque desde o começo eu queria viver da música que eu gosto. E eu gosto de música instrumental! Fiz coisas de canção, até alguma coisa popular, mas sempre o foco foi a música instrumental, jazz, e o dito “instrumental brasileiro”, e a canção de qualidade, por conta dos músicos. A Fabiana Cozza fez o primeiro disco comigo e faz até hoje, porque o Marcos Paiva – que era o diretor musical dela, o cara que tocava o instrumental e que gravava comigo – trouxe a cantora. Então, os cantores vinham por causa dos músicos. Isso há 25 anos.


Há alguma gravação ou um disco, nessa época, que foi um divisor de águas?

Comecei atendendo igrejas, e por conta disso, eu tinha alguns amigos, músicos, que conheciam o meu trabalho e acabavam vindo. E nisso, um cliente, que é um diletante, um querido amigo, Sabetai Calderoni, de uma família até bem interessante – o filho, Ricardo Calderoni, é regente; o sobrinho, Vinicius Calderoni é um “baita” compositor e diretor de teatro – chega lá por conta de amigo de amigo de amigo, e começa a gravar as composições de forma diletante mesmo. Ele compunha umas músicas, a gente ajustava, fazia um arranjo e tal… Nisso, ele encomendou para o professor de violão do filho dele na Santa Marcelina, o Ulisses Rocha, um arranjo. E ele fala: “O Ulisses vai entregar o arranjo para você, você vê aí como é que vai ser e tal”. Eu já era fã do Ulisses desde o Free Jazz de 1992. Aí, quando ele me ligou, eu gelei, pois foi o primeiro grande nome significativo a me ligar. E ele falou: “Estou com dificuldade de tirar os arranjos do meu computador, porque não sei o quê, minha máquina, você sabe…”. “Traz aí que eu dou um jeito”, respondi. A gente começou a trabalhar. Ele falou: “Gostei de você! Você trabalha fora, também?”. Falei: “Claro, trabalho em outros estúdios”. E ele adiantou: “Estou com uma parceria com o André Geraissati, e o cara que gravava lá para a gente está indo para outro caminho. Eu preciso de alguém lá… Você topa fazer umas gravações?”. Aí, fui. O André Geraissati é outro ícone do violão, da composição, da trilha, da produção musical. E o Ulisses já era professor da Unicamp fazia um tempo. Então, dois pesos pesados do violão! Quer dizer, de repente, um telefonema me colocou em contato com o Ulisses, e os dois viraram meus irmãos mais velhos desde então, e são queridíssimos. Aí, o Ulisses falou: “Tem um disco que quero que você faça aqui, um disco para a Azul Music”. Nessa época, a Azul Music era bem essa coisa da música new age, étnica, e ele estava fazendo um disco, o Acoustic Lounge, que rendeu um absurdo, entrou em centenas de coletâneas, em que o Ulisses explora o violão em todas as formas, microfonado, plugado, com VG, com distorção… Me lembro de que, na época, a gente contou mais de 40 formas de se gravar violão. Nisso, entro na Azul Music, começo a fazer amizade com o Corcioli, que também virou um irmão. Então, na realidade, conhecer o Ulisses me colocou no mundo do violão, e me colocou na Azul Music, fazendo que muita coisa acontecesse. Do Ulisses veio o Toninho Ferragutti, e aí foram inúmeros discos. Fiz 10 discos com ele, e outros caminhos foram se abrindo. O baterista Pepa D’elia tocava com o Ulisses e tinha um quinteto com o Marcos Paiva, que foi gravar com o Pepa e trouxe a Fabiana Cozza… Então a genealogia vai abrindo e vai ficando um negócio quase que “irrastreável”. Mas começou ali! Nesse momento do Ulisses, comecei a trabalhar com esses músicos e viver todo dia essa coisa.


Essa gravação do Acoustic Lounge Cafe foi feita no estúdio do Geraissati?
O Acoustic Lounge Cafe foi gravado no estúdio que o Ulisses tinha com o André Geraisatti, na Vila Mariana, num apartamento. Era um estúdio bem interessante. E foi a minha conversão à audiofilia, porque foi ali que, pela primeira vez, tive contato com um equipamento high-end. Aliás, esse equipamento hoje é meu. Depois de tantos anos, comprei do André as caixas Dynaudio, os amplificadores Bryston, aquela cabeira toda. Com o André eu conheci a audiofilia e comecei a desenvolver essa doença crônica sem cura. (risos)


E quando resolveu sair do estúdio que arrendava na sede da igreja e montar o atual?
O estúdio era pequeno e eu trabalhava com um computador que estava aberto para não superaquecer. Eu ainda fazia muito projeto, fiz sei lá quantos teatros, estúdios, montava máquinas para estúdios, fazia otimizações de computadores para vários amigos… Enquanto o estúdio estava crescendo, trabalhei também em outros dois estúdios, fazendo a técnica deles. Então, eu ficava com três, quatro estúdios fazendo projetos, uma loucura! No início, fui me capitalizando, investindo, então chegou uma hora em que o equipamento foi crescendo, e… “Beleza, preciso de um piano!”. Eu tinha um piano de armário, que eventualmente usava em gravações. Era um armário alto, mas não tinha a ressonância de um cauda, claro. Nisso, um amigo meu estava viajando, ia passar uma temporada fora do Brasil, e falou: “Tenho um piano que eu não queria vender”. Aí fizemos um acordo: fiquei dois anos com o piano dele – que era um quarto de cauda, quase meia, 1,60m de comprimento – mas que não era um instrumento incrível. Precisava de muita manutenção, de uma reforma… Antes disso, eu gravava com teclado. Eu tinha um GEM Pro II, que era um teclado digital interessante, bem bom, mas digital. Aí veio o piano e comecei a gravar algumas pessoas, mas não era o lance. E eu comprando equipamento, sempre acumulando… Chegou uma hora em que não tinha mais espaço no estúdio nem na minha casa para guardar equipamento, porque era muita coisa. O Daniel Tápia, que é um cara que começou a trabalhar comigo, meu discípulo mais velho, entrou na Universidade Federal do Espírito Santo como professor. Lá, começou a conversar com uma amiga, contou a história do estúdio, o que ele aprendeu, o que estava desenvolvendo no estúdio da UFES. E aí… “Uma amiga minha está vendendo um piano lá no Rio, incrível, será que o Junior não tem interesse?”. Ento houve um primeiro contato com a magnífica Linda Bustani. Ela falou o preço do piano, achei interessante, mas não era para o meu bico, naquele momento. Se passam uns seis meses, e ela resolveu baixar o preço um pouquinho. O dólar subindo, os preços mudando e ela reduzindo o valor. Então, ficou interessante. Busquei um parceiro para ver se queria comprar comigo, mas é um cauda inteiro, não é um preço barato. Se passaram mais dois anos e ela foi um anjinho: “Não quero fazer negócio com o piano, quero que esse piano seja usado”. Conclusão: ela fez caber no meu bolso, da forma que eu podia. Nisso chega o Estônia, 274, ano de 1992, piano “perestróico”, porque a Estônia saiu da Rússia em 1992. Eu tinha uma sala de 7,5m por 4,5m, com um piano de 2,74m, ou seja, ele ocupava de 20 a 25% da área do estúdio. E aí comecei a gravar muita coisa. O estúdio cresceu muito com o piano e com meu trabalho. Obviamente, foi ficando mais conhecido. As pessoas foram gostando mais, começo a ter visibilidade, e aí acontece: “Este espaço não está dando mais!”. Já não dava há muito tempo, mas eu retardei esse momento. E eu sempre passava por esta casa, que é incrível. Era o meu caminho: eu saía do estúdio, ia para o show, coisa assim e passava aqui. Um dia, o cara estava aqui, na porta, e a placa ali, aluga-se. “Negociei”, ele falou, “porque a casa está parada há 8 meses, o pessoal está desesperado, porque imóvel parado…”. Conclusão: consegui fazer caber no bolso e foram 40 dias de obras aqui. No dia 1º de novembro de 2017, fiz a última sessão de mixagem no estúdio antigo, com o Caixa Cubo Trio. Às 5 da tarde, acabou a sessão, desliguei as máquinas e comecei a desmontar tudo. Vim para cá montar, eu e umas 8 pessoas, e, às 5 da manhã, ou seja, 12 horas depois do início da desmontagem, desligamos tudo e fomos dormir, porque às 9h00 tinha uma big band gravando aqui. (risos) Na madrugada, uma das interfaces queimou e tive que recalcular tudo, mas às 9 da manhã estava aqui gravando a Banda Urbana. Fiz uma estrutura capaz de receber bastante gente, 25, 30 pessoas, “pianão”, tocando e gravando todo dia. E é isso.


Depois de todo esse processo, vem a questão da captação. Você segue um padrão “normal” ou buscou também outros métodos, diferentes?
Eu misturo técnicas porque nenhum tipo de captação padrão revela tudo o que o piano tem sozinho, porque o piano emite som por tudo quanto é lado. Então, a perspectiva do pianista é uma, a de quem está na cauda é outra, se põe a cabeça dentro dele, tem grave que sai por baixo… Então, há várias técnicas e nenhuma, para mim, é completa, pois todas vão ter um bom som de piano, mas não vão trazer tudo o que o instrumento revela. Tenho uma vontade, que sempre foi o meu norte – nas decisões, de técnicas, de microfonação, e tudo mais – que quero que a expressão musical com o instrumento seja revelada ao máximo. Não quero fazer um som “meu”. Até brinco: eu não “tiro som” – não gosto da expressão “tirar som”, porque eu não “tiro o som” -, você tira o som do instrumento, e eu tenho que ser fiel, leal, justo e digno daquilo que você faz. Então, o que estou escutando do instrumento é o que eu quero que resulte na técnica.


Há técnicos que gostam bastante de mexer na sonoridade depois da captação. Há outros que não gostam. Como é com você?
Sou bem purista. Mas não sou purista de técnica, sou purista de resultado auditivo. Quero que o instrumento soe pleno em qualquer dispositivo de reprodução. Para fazer um violão incrível, maravilhoso, soar incrível, maravilhoso no celular, talvez eu precise “meter a mão”. Mas não vou meter a mão para transformar algo, levar para um caminho que eu quero. Eu quero um resultado puro, que o músico se reconheça tocando, que tenha o seu som pleno, ali, representado. E para isso eu tenho que “meter a mão”. É diferente do colorista, o “cara” que pega um áudio e transforma sempre pelo prazer estético de recriar, de transformar ou recriar. Quero um resultado purista, que você não escute, evidentemente, a manipulação. É da transparência que sou visível, porque ser transparente é muito difícil.

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