Após um hiato de 45 anos desde a última gravação no Brasil, os 50 Ponteios de Camargo Guarnieri ressurgem pelas mãos de uma das maiores pianistas brasileiras da atualidade
A pianista Karin Fernandes é uma artista multifacetada. Premiada em primeiro lugar em 21 concursos de piano, foi a primeira colocada no X Prêmio Eldorado de Música, em 1999. Em abril de 2017, foi escolhida Melhor Instrumentista Erudita no Prêmio Profissionais da Música e, em 2015, seu CD Cria – Nova Música Brasileira Para Piano recebeu o Prêmio Concerto de Melhor CD do Ano.
A paulistana aprimorou suas habilidades em cursos na Europa, com destaque para seus estudos com Maria João Pires, Bernard Flavigny e sua bolsa de estudos no Philomusica Piano Festival em Oxford. Como solista, Karin já se apresentou junto à Amazonas Filarmônica, Orquestra Sinfônica de Campinas, Osusp, Osesp, Camerata Osesp, Ensemble Cairn (França), Sinfonia Cultura, Orquestra do Theatro São Pedro, Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, Orquestra Sinfônica de Sergipe e Orquestra Sinfônica Nacional (Paraguai), dentre outras.

@ Dani Gurgel
Como recitalista, se apresenta com frequência na Europa (Inglaterra, França, Alemanha e Portugal) e América do Sul (Brasil, Argentina e Paraguai). Em 2022, a convite do Selo NAXOS, realizou um recital em comemoração aos 200 anos da Independência do Brasil na Embaixada do país em Berlim. Em 2023, realizou recitais solo em Hamburgo, Berlim, Lisboa, Paris e Castelo Branco, e, em setembro de 2024, sua quinta turnê europeia, com recitais em Paris, Londres e Berlim. E já se prepara para mais uma turnê pelo Velho Mundo, apresentando, entre outras peças, seu mais recente lançamento, o álbum com a gravação integral dos 50 Ponteios de Camargo Guarnieri.
Os 50 Ponteios foram gravados integralmente somente duas vezes no Brasil: por Isabel Mourão, em 1961, e por Laís de Souza Brasil, em 1979 (uma terceira gravação foi feita pelo pianista Max Barros, nos Estados Unidos, dentro de um projeto maior de registro de toda a obra pianística de Camargo Guarnieri). Ambas as pianistas conviveram com Guarnieri e trabalharam com ele na preparação desse conjunto, o qual levou cerca de 30 anos para ser finalizado. Karin Fernandes vem se somar ao time de mulheres que trazem à luz essa preciosa coleção do compositor, ao mesmo tempo em que propõe uma abordagem contemporânea das obras.
Lançamento do Selo Sesc, o álbum digital democratiza uma das maiores obras da música de concerto brasileira, uma vez que as integrais anteriores não estão disponíveis nas plataformas. A pianista atendeu à reportagem de Teclas & Afins para falar sobre o álbum e a importância desse trabalho para a música brasileira.
Como surgiu a ideia de gravar os 50 Ponteios? Por que essa escolha?
A ideia foi da Camila Fresca, que é jornalista, crítica de música. Ela propôs o projeto ao Sesc já há alguns anos e, faz um tempo, veio falar comigo para perguntar se eu queria fazer. Lógico que aceitei! Até então, eu havia tocado apenas alguns dos Ponteios e orientado alunos em alguns, mas nunca pensei em gravar todos. Não que um dia eu também não tivesse essa ideia, mas a ideia foi dela. Acho que depois de uns 5 anos que ela propôs que a gente começou a gravar. O “OK” final tivemos no fim de 2023 e, no ano passado, gravei algumas sessões durante o ano, porque eu não podia parar para fazer só isso. São 50 Ponteios, são 50 peças, e, apesar de elas serem curtas, algumas são muito complexas. A maioria é muito complexa musicalmente, e algumas bastante complexas tecnicamente. Se eu não me engano foram seis sessões de gravação. Em algumas, gravei mais de dez (Ponteios) e, em outras, gravei cinco. Dependia do que eu estava tendo de compromissos. Em julho, por exemplo, não consegui gravar, porque toquei em cinco cidades diferentes. Então, fui adequando os concertos que eu tinha com o estudo e a gravação desses Ponteios.
A última gravação integral dos Ponteios tem 45 anos. Durante esse período, houve muitas transformações no estilo dos pianistas. Por conta disso, e por você já ter tocado alguns dos Ponteios e orientado alguns alunos, é possível dar a essa obra uma nova perspectiva, uma abordagem mais contemporânea?
Foram duas pianistas que gravaram a integral dos Ponteios aqui no Brasil , mas não tenho os discos, consegui os áudios da internet. Alguns não estão nas plataformas, outros só se consegue ouvir no YouTube ou com colecionadores. Então, a Camila teve essa ideia de fazer uma gravação mais atual dos Ponteios, porque são obras realmente muito importantes para o piano brasileiro, para a música brasileira, assim como os Prelúdios de Chopin, e outras séries de peças curtas de outros compositores e compositoras. Acredito que os Ponteios se equiparam nessa importância na formação e na carreira, e como repertório de quem trabalha tocando. São peças brasileiras muito importantes. Ouvindo a gravação dessas pessoas, alguns deles estão bem diferentes. Esse pessoal às vezes tocou mais rápido, e toquei mais lento, ou o contrário, porque eu entendi que a música flui melhor, a ideia musical flui melhor, dá para mostrar mais o fraseado, todo o contraponto das vozes, enfim… Essa questão, de não terem sido tão gravados, influencia, porque ainda é possível ter opiniões bastante diferentes. Mas, até uma sonata de Beethoven que é muito gravada, pode ser que alguém toque diferente. Às vezes é uma intenção de frase, uma coisa mínima, mas é justamente o que define os artistas. Eu acredito que a arte precisa ter um toque pessoal, sua visão daquilo – lógico que dentro de uma série de conceitos, não sei se dá para falar “regras”. Não dá para fazer superlenta, por exemplo, uma peça que é super-rápida, de um Allegro fazer um Adagio. Lógico que, dentro dessa gama de “regrinhas”, a gente tem uma visão pessoal. E isso é importante, porque, senão, para quê? Não vejo sentido em tocar igual às outras pessoas. Porque alguém já gravou, eu vou copiar? Não tem muito sentido.
Quais aspectos da obra de Camargo Guarnieri, principalmente nos Ponteios, mais lhe atraem?
Os Ponteios são monotemáticos, alguns até parecem estudos – o 40, por exemplo. Guarnieri apresenta uma ideia e a desenvolve magistralmente, seja do ponto de vista de composição, de harmonia, tudo. Quando o pianista consegue ler e a peça “está na mão”, ele começa a decifrar a melodia, o que é o fraseado daquela música… Cada vez que eu tocava eu descobria mais coisas! E acho que, se eu fosse gravar tudo de novo, daria para fazer ainda mais coisas porque, recordando o que gravei, descobri mais coisas de fraseado, às vezes uma intenção de frase, uma coisinha, um detalhe, que daria para fazer. O Guarnieri foi e é um dos compositores mais importantes do Brasil porque ele tinha essa questão de pegar uma coisa relativamente simples e fazer um negócio grandioso. Pode ser até de meia página, mas o universo musical, artístico, sonoro, harmônico, tudo o que tem ali é impressionante. Ele pega um acorde, coloca umas extensões, mais umas coisas, e caminha com a harmonia de um jeito que “nossa, olha o que ele fez! A ideia era uma coisa até meio boba…”. Acho que isso é o mais bonito do Guarnieri. Sempre falo que adoro tocar músicas tristes e músicas lentas. Adoro! É onde consigo colocar todos os sentimentos, aquela coisa da vida, da tristeza, do sofrimento ou da alegria, sei lá. Pela maioria dos Ponteios ser de peças mais lentas e mais cantadas, foi um divertimento incrível para mim. Lógico: é uma responsabilidade. Mas buscar todas as emoções – que a gente meio que faz como os atores, as atrizes – buscar como a gente vai contar, vai transmitir essa emoção na música, nos dedos e nas teclas… Acredito que foi isso que mais gostei de fazer nesse projeto: essa descoberta.
A interpretação da música de Guarnieri exige uma certa aproximação do pianista com a música popular e a música folclórica?
Sim! Alguns dos Ponteios, por exemplo, têm uma mão esquerda que se assemelha muito a um grupo de choro, ao violão de sete cordas. Parece que alguns pianistas, excelentes, nunca assistiram uma apresentação de um grupo de choro. Acredito que música brasileira, quando tem esses elementos da composição brasileira – não os ritmos exatamente, mas a composição brasileira, dos compositores que se valem da nossa cultura popular -, não tem como você tocar bem sem conhecer um pouco disso. E é cultura geral! Poxa! A gente mora no Brasil, tem gente que nunca foi assistir um grupo de choro, não conhece Hermeto, Gismonti, Guinga e um monte de gente. Não sei nem se (é preciso) estudar exatamente, mas pelo menos buscar, ouvir, tentar entender o que acontece. Em alguns Ponteios, essa mão esquerda, principalmente, é muito
marcante. Mas não só os Ponteios. Do Guarnieri, já fiz três obras para a piano e orquestra: o “Choro”, a “Seresta” e a “Homenagem a Fructuoso Vianna – essa é um pouco diferente porque ele pegou uma série de peças do Fructuoso e orquestrou. Mas o “Choro” e a “Seresta”… Olha os nomes! Tem outras pessoas que gravaram, escuto e digo: “essa pessoa nunca ouviu um violão de sete cordas!”. Não é que está errado, está tudo certo, mas certo no sentido mozartiano. Parece que a pessoa está tocando uma sonata. Então, acredito que não tem como tocar uma coisa assim sem conhecer. Toquei música popular, inclusive profissionalmente, durante um tempo, com vários cantores, com a Tetê, com Luli & Lucina, com a Alaíde Costa. Quando entrei no Conservatório de Tatuí para dar aulas, pensei: “tem um monte de coisa aqui, vou estudar”. Aí fiz aula de violoncelo, de viola, o curso de música popular, enfim… Até hoje me arrependo de ter parado de tocar, mas, sempre vou a muitos shows, porque gosto. E acho que a gente tem que ir. Tem muita coisa boa, não só no meu universo, então, não dá para desvincular isso. O Guarnieri foi um compositor excelente, conhecia essas coisas, então, elas estão ali. Quando você conhece, se identifica e, com certeza, a música fica muito mais rica e interessante.
Alguns Ponteios exigem mais tecnicamente, outros exigem mais interpretativamente. Você poderia pontuar um pouco isso?

@ Dani Gurgel
Meus preferidos são dois lentos: o 26 e o 34. O 26 caminha um pouco mais pelas ideias, mas tem uma mão esquerda que precisa ser superpianíssimo e fica andando em quintas. Então, é preciso ter um domínio técnico muito grande, apesar de ser lento. Às vezes, a gente acha que o que tem mais nota é mais difícil, mas não é bem assim com Guarnieri e outros compositores, porque tem a questão musical, que você tem que “cavar”, não é nada óbvio. Às vezes, há uma frase que começa em um lugar e vai para o outro, e isso não tem indicação, o pianista tem que entender. O 34 também, que é com intervalos de terças, grandes, como se fosse um sino… Apesar de ter poucas notas, é preciso ter um domínio grande do teclado, porque ele tem crescendos e diminuendos muito grandes. Então, o pianista precisa ter bastante controle. O 40, que é o mais longo deles, é rapidinho e tem bastante nota. Dá um trabalhinho, do meio para o fim. O 21 é bem rápido também, e até gravei três vezes, porque tive um problema na unha no ano passado e fiquei o ano inteiro com isso, que me atrapalhou. Eu não conseguia tocar, não conseguia estudar muito, porque bati a unha, começou a crescer uma por cima e a de baixo não caiu. Eu deveria ter parado de tocar, porque começou a infeccionar. Fiz um monte de exames, não descobria o que era… Enfim, fiquei o ano inteiro com isso. E, acho que foi o 21, achei que estava muito mais lento, voltei ao estúdio e gravei de novo. Tem uns saltos muito grandes, com as duas mãos, cada uma para um lado, o que demanda essa coisa de reflexo muito rápido, tem que decorar, não dá para ficar lendo. Do primeiro caderno, os dois últimos são um pouquinho enroscados, porque tem uma linguagem mais contemporânea, mas, no geral, todos têm uma dificuldade. Se não é a dificuldade de ter muitas notas, é a dificuldade de precisar realmente ficar tocando aquilo até descobrir o que ele quer dizer, porque há fraseados que não são óbvios. Não é uma música óbvia, não é uma harmonia óbvia, então a demanda é diferente. O Guarnieri, a escrita dele, é sempre complexo. Acho que ele fazia uma melodia com uma harmonia bem simples, depois falava: “vou entortar aqui, vou entortar aqui, esse acorde aqui está muito normalzinho, deixa eu entortar” (risos), e aí ele vai compondo e criando o universo dele.
Leia a entrevista de Karin Fernandes na edição 129 da revista digital Teclas & Afins clicando aqui!

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